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Centro de detenção a céu aberto revela descaso alarmante com a saúde dos imigrantes ilegais na California

NY TIMES – Para a Dra. Theresa Cheng, a cena era “apocalíptica”. Ela tinha chegado ao Vale da Lua, área de detenção a céu aberto em Mountain Empire, região rural de San Diego, para prestar assistência médica voluntária aos requerentes de asilo que tinham conseguido transpor o muro na fronteira entre o México e os EUA e aguardavam para ser apreendidos pelas autoridades.

Em meio à turba, ali e em outros centros semelhantes, encontrou crianças com cortes profundos, ossos quebrados, febre, diarreia, vômitos e até convulsões; algumas se esconderam em aterros e banheiros químicos transbordando. Um garoto asmático, sem inalador, lutava para respirar em meio à fumaça acre das fogueiras feitas com galhos e lixo para afastar o frio.

Com a capacidade dos centros de processamento no limite, os ilegais, incluindo crianças desacompanhadas, têm de esperar horas, às vezes dias, nesses espaços onde a falta de proteção, alimento e infraestrutura sanitária gera grandes preocupações em relação aos mais vulneráveis. “Do ponto de vista da saúde pública, as doenças transmissíveis e a exposição aos elementos derrubariam qualquer um, quanto mais uma população clinicamente vulnerável como essa”, disse Cheng, emergencista do Centro de Traumatismo e Hospital Geral Zuckerberg, em San Francisco.

O juiz de uma corte distrital da Califórnia está na iminência de decidir se o governo tem a obrigação legal de abrigar e alimentar as crianças que estão à espera.
Em petição, os advogados do Departamento de Justiça alegam que, uma vez que ainda não estão formalmente sob a responsabilidade da Alfândega e Proteção de Fronteiras (CPB, em inglês), o órgão não fica obrigado a fornecer o serviço. “Os menores que se encontram nas áreas próximas à fronteira da Califórnia com o México não foram detidos ou apreendidos pelo CBP, ou seja, não estão sob sua custódia legal. A entidade apenas os leva às instalações que montou, seguras e higiênicas, com rapidez. Enquanto isso não ocorrer, os requerentes não estão sob responsabilidade do DSI”, referindo-se ao Departamento de Segurança Interna.

Quando os estrangeiros entram nos EUA por outro local que não sejam os portais oficiais, geralmente se apresentam aos agentes da Patrulha de Fronteira próximos ao muro com a intenção de serem apreendidos. A seguir, são levados a uma unidade de processamento, onde fazem exames médicos, passam por uma pesquisa de antecedentes criminais e recebem provisões básicas antes de dar início ao processo legal.

Já os centros a céu aberto não oferecem abrigo, nem refeições, muito menos serviços médicos. Segundo Erika Pinheiro, diretora executiva da ONG Al Otro Lado, que oferece assistência legal e humanitária nesses acampamentos, alguns não têm nem banheiros, forçando as pessoas a defecar ao ar livre. Com um número limitado de fraldas, lenços úmidos e cremes, os bebês são forçados a ficar muito mais tempo que o recomendado sem troca, sofrendo assaduras sérias, como mostram as provas judiciais.

Um membro do alto escalão do CBP admitiu em entrevista que essas pessoas às vezes têm de esperar vários dias para passar pelo processamento de entrada, mas garantiu que os grupos mais vulneráveis, como as crianças, sempre têm preferência, e que o tempo de espera caiu bastante nos últimos meses.

“Em San Diego, a capacidade de triagem mais que triplicou; com isso, aumentou também o número de ônibus para transporte e pessoal para agilizar o processamento. Acontece que o sistema não foi criado para os volumes que estamos recebendo; nas regiões mais remotas, as chegadas aumentaram demais, exigindo muito mais dos recursos, já que os veículos e funcionários passam mais tempo se deslocando entre os campos e as estações da patrulha. É preciso um aumento substancial na verba federal para solucionar esse problema integralmente.”

Pelo menos sete áreas de detenção foram criadas em vários pontos ao longo da fronteira californiana, como a ampla porção do deserto no acostamento de uma rodovia e o espaço estreito entre dois muros divisórios paralelos erguidos a poucos metros da cidade de Tijuana, no México. Nenhuma foi estabelecida formalmente pelo setor de imigração, mas todas se tornaram parte essencial das operações – espaços improvisados onde os imigrantes são instruídos a entrar em fila, tirar os cadarços dos sapatos, ficar só com uma camada de roupa e aguardar.

De acordo com Adriana Jasso, que administra uma estação de ajuda voluntária da ONG American Friends Service Committee bem na frente dos pilares de aço do muro fronteiriço em San Ysidro, na Califórnia, a falta de comida, água e leite em pó fornecidos pelo governo é altamente preocupante. “O país mais poderoso da história da humanidade, com maior concentração de riqueza, não consegue suprir as necessidades básicas dessas crianças? Não faz sentido.”

Os grupos de defesa já registraram várias denúncias formais na Agência pelos Direitos e Liberdades Civis do Departamento de Segurança Interna, e a equipe de advogados que representa as crianças sob custódia da imigração como parte do acordo judicial federal de 1997 entrou na justiça.

O acordo de Flores foi a decisão que estabeleceu o padrão de tratamento das crianças imigrantes detidas pelo governo. Entre outras coisas, exige que tenham acesso a banheiros, alimentação, água potável e assistência médica emergencial, bem como sua soltura e encaminhamento para quem de direito, seja pai/mãe ou parente, “sem demora desnecessária”.

Os advogados das instituições envolvidas nessa deliberação – incluindo os representantes da ONG Centro Nacional pela Justiça Jovem de Oakland, na Califórnia – deram entrada em uma nova ação para garantir que os jovens aguardando triagem nas áreas de detenção a céu aberto sejam beneficiados por ela. Alegam que merecem o mesmo nível de proteção e qualidade de tratamento dos que já estão sob custódia oficial, uma vez que estão proibidos de sair de onde se encontram e não podem nem voltar para o lugar de onde vieram.

É difícil avaliar a gravidade das exigências médicas infantis nas áreas de detenção, já que os voluntários só podem entrar para tratar as crianças de acordo com o bom humor dos agentes, e os inúmeros grupos de assistência não mantêm registros dos ferimentos tratados ou do volume de eletrólitos usados. Os médicos estão especialmente preocupados com os casos de hipotermia infantil, uma vez que os pequenos têm menos gordura corporal que os adultos e podem estar desnutridos. Além disso, os estrangeiros ficam expostos às chuvas torrenciais nessas áreas, o que faz com que a temperatura do organismo despenque. Dois menores foram internados em fevereiro.

Segundo Karen Parker, assistente social de Boulevard, na Califórnia, que faz a triagem médica voluntária nos campos da região leste, além de ver muitos casos de fratura de pé e torção de tornozelo, ela se depara com muitos menores desacompanhados tendo ataques de pânico. “O estresse, a exaustão e o trauma estão fazendo com que adoeçam fisicamente. Olhando para eles, dá para ver que estão aliviados por finalmente terem chegado, mas todos têm o olhar distante.”

O número de imigrantes e a duração da espera vêm variando desde meados de 2023. Nas últimas semanas, o Exército mexicano começou a “empurrá-los” para o oeste, região mais urbana entre Tijuana e San Ysidro, onde ficam espremidos, esperando os agentes federais em um espaço de 85 metros entre a primeira e a segunda barreiras. Como há menos vãos na muralha inicial, as crianças têm de ser passadas por cima ou por baixo, apesar do arame farpado. Por isso, segundo os agentes humanitários, cresceu o número de cortes profundos na cabeça, e os neurocirurgiões registraram um aumento no número de traumas.

O serviço médico local tem recebido uma enxurrada de chamadas, e o pessoal assistencial diz que os agentes federais negam seus pedidos de ligação para o número de emergência, sugerindo que os estrangeiros estão fingindo. Quando se depara com ferimentos graves, geralmente é forçado a ligar para os médicos voluntários, que lhe diz por telefone o que fazer.

Foi o que aconteceu com Cheng há algumas semanas, ao chegar a uma área de detenção e dar de cara com um garoto de 13 anos quase sem pulsação, sangrando pelos ouvidos e pelo nariz. Segundo depoimento juntado ao processo judicial, ela disse que havia dois patrulheiros nas imediações, mas nenhum dos dois fez menção de ajudar o menino. “Fiz a reanimação cardiorrespiratória, mas a ambulância levou uma hora para chegar. Ele acabou morrendo.”

c. 2024 The New York Times Company

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