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Políticos latino-americanos transformam migração ilegal para os EUA em negócio lucrativo

Por: The New York Times – A cada passo dado na selva de Daríen, a única rota terrestre entre a América do Sul e os Estados Unidos, há uma oportunidade de ganhar dinheiro.

O trajeto de barco até a floresta tropical custa US$ 40. Um guia na rota traiçoeira no início da caminhada: US$ 170.
Um ajudante para carregar sua mochila pelas montanhas lamacentas: US$ 100. Um prato de frango com arroz depois de uma escalada árdua sai por US$ 10. Um pacote especial com tudo incluso para tornar a perigosa caminhada mais rápida e mais suportável, com barracas, botas e outros itens, pode custar US$ 500 ou mais.

Ainda assim, centenas de milhares de migrantes estão atravessando esse pedaço de selva, um número sem precedentes que o governo Biden e o governo colombiano prometeram conter.

Mas o lucro inesperado obtido na borda do continente é simplesmente grande demais para ser ignorado, e os empreendedores por trás dessa corrida do ouro dos migrantes não são contrabandistas clandestinos que se escondem das autoridades.

Os migrantes atravessam a fronteira natural do Darién, de 266 km de extensão e 575.000 hectares de área, apesar dos perigos como animais selvagens e rios caudalosos.

São políticos, empresários de destaque e líderes eleitos, que agora organizam diariamente a migração de milhares de pessoas em direção aos Estados Unidos, à vista de todos, lucrando milhões de dólares por mês por esse privilégio.

“Cuidamos de tudo: dos barqueiros, dos guias, dos carregadores de bagagem”, disse Darwin García, membro eleito do conselho comunitário e ex-integrante do conselho municipal de Acandí, município colombiano situado na entrada da selva. Ele acrescentou que a multidão de migrantes dispostos a arriscar tudo para chegar aos Estados Unidos é vista como “a melhor coisa que poderia ter acontecido” a uma cidade pobre como a sua.

Atualmente, Luis Fernando Martínez, irmão mais novo de García e líder de uma associação de turismo local, emerge como um dos principais candidatos à prefeitura de Acandí. Sua plataforma política defende o negócio da migração como o único setor lucrativo em uma região que “antes não tinha uma economia definida”.

Lucros e exploração
O estreito de Darién se transformou rapidamente em uma das crises políticas e humanitárias mais prementes do Hemisfério Ocidental. O fluxo migratório, que há apenas alguns anos era escasso, aumentou drasticamente: mais de 360 mil pessoas já cruzaram a selva em 2023, de acordo com o governo panamenho.

Mãe e filha venezuelanas chegam ao vilarejo de Canaan Membrillo, o primeiro posto de controle fronteiriço da província de Darién, Panamá, em 13 de outubro de 2022 – AFP/Arquivos

Em vista disso, os Estados Unidos, a Colômbia e o Panamá firmaram um acordo em abril para “deter a movimentação ilegal de pessoas” que passam pelo estreito de Darién, prática “que resulta em mortes e na exploração de pessoas vulneráveis para obter lucros significativos”.

Hoje, esses lucros são maiores do que nunca. Só neste ano, líderes locais já tiraram dezenas de milhões de dólares dos migrantes, em uma vasta operação de movimentação de pessoas.

“É um negócio altamente lucrativo”, afirmou Fredy Marín, ex-membro do conselho municipal da cidade vizinha de Necoclí e administrador de uma empresa de barcos que leva migrantes para os Estados Unidos, cobrando US$ 40 por cabeça. Marín agora é candidato a prefeito de Necoclí, e promete preservar o próspero setor de migração.

Nos últimos meses, diplomatas americanos têm visitado as cidades próximas ao estreito de Darién, percorrendo as ruas poeirentas e cumprimentando figuras como Marín e García, além de outros participantes da indústria da migração. As autoridades da Casa Branca dizem acreditar que o governo colombiano está cumprindo seu compromisso de reprimir a migração ilegal.

Mas, na prática, a realidade é inversa. O The New York Times passou vários meses no estreito de Darién e nas cidades vizinhas e observou que, na melhor das hipóteses, o governo nacional tem uma presença apenas periférica.

O presidente da Colômbia, Gustavo Petro, admitiu que o governo federal tem pouco controle sobre a região, mas ressaltou que não é sua intenção impedir a migração pelo estreito de Darién. Afinal, argumentou ele, essa migração é decorrente de políticas desfavoráveis aos povos latino-americanos, adotadas especialmente pelos Estados Unidos, destacando as sanções de Washington contra a Venezuela.

Na ausência do governo colombiano, líderes locais decidiram lidar com a migração por conta própria.

Hoje, o negócio é administrado por membros eleitos do conselho comunitário, a exemplo de García, por meio de uma organização sem fins lucrativos oficialmente estabelecida, criada pelo presidente do conselho e sua família, chamada Fundación Social Nueva Luz del Daríen, que administra toda a rota de Acandí até a fronteira com o Panamá — estabelecendo tarifas de viagem, cobrando taxas e coordenando acampamentos vastos na selva.

A fundação contratou mais de 2.000 guias locais e carregadores de mochilas. Os migrantes pagam por diferentes níveis do que a fundação chama de “serviços”. O pacote básico, que inclui um guia e segurança até a fronteira, custa US$ 170. Depois do pagamento, um “consultor” de migração coloca duas pulseiras nos migrantes, como comprovação do pagamento. “É como um ingresso para a Disney”, comentou Renny Montilla, de 25 anos, trabalhador da construção civil da Venezuela.

García afirma que o trabalho da fundação está dentro da legalidade, em parte porque direciona as pessoas até uma fronteira internacional, mas não as ajuda a atravessá-la.

Algumas autoridades questionaram se a fundação não está, na verdade, conduzindo uma operação de contrabando sob a fachada de uma organização sem fins lucrativos. Um oficial de direitos humanos responsável pelo monitoramento do governo de Necoclí atribuiu a crise à negligência dos líderes nacionais, e observou que as autoridades não têm motivação para acabar com o problema, uma vez que lucram com ele.

Até mesmo o irmão de García, candidato a prefeito, expressou o desejo de que o governo federal esclarecesse a situação juridicamente delicada das atividades dos residentes locais no setor de migração. “Quinhentas mil pessoas vão passar pela nossa cidade. O que podemos fazer?”, questionou Martínez.

Um grande e poderoso grupo de tráfico de drogas, conhecido como Forças de Autodefesa Gaitanistas, às vezes como Clã do Golfo, monitora todo o negócio. Seu domínio sobre essa parte do norte da Colômbia é tão absoluto que a ouvidoria do país se refere a ele como o agente armado “hegemônico” da região.

Em uma declaração, o grupo armado enfatizou que não obtém lucro algum com o comércio que envolve os sonhos dos migrantes.

No entanto, o presidente colombiano rejeitou essa afirmação, alegando que o Clã do Golfo ganha US$ 30 milhões por ano com operações ligadas à migração.

Na fronteira da floresta, as transações são bastante transparentes. Antes de entrar na selva, os migrantes são obrigados a desembolsar uma taxa separada, que gira em torno de US$ 80 por pessoa, como um pedágio para garantir a travessia pelo estreito de Darién, de acordo com relatos de diversos cobradores de taxas em Necoclí.

Segundo esses cobradores, depois de efetuar o pagamento os migrantes recebem um comprovante: um pequeno adesivo que é colado no passaporte, geralmente uma bandeira americana.

Domando uma selva
Densa, quente e sujeita a chuvas intensas, entrecortada por rios impetuosos e montanhas íngremes, a selva de Darién funciona há gerações como uma imensa barreira natural entre as Américas do Norte e do Sul.

Guerrilheiros e outros grupos armados há muito tempo exploram a densa floresta para se proteger e contrabandear drogas. Em razão das condições geográficas e da ameaça constante de violência, a região costumava manter todos afastados, exceto os mais desesperados.

Mas uma combinação de crises e mudanças políticas provocou um grande aumento no número de pessoas que empreendem a jornada da América do Sul rumo aos Estados Unidos nos últimos anos.

Nesse cenário, a Fundación Social Nueva Luz del Darién emergiu como uma força que está transformando essa barreira natural em algo muito mais transitável. Estabeleceu restaurantes e acampamentos e contratou carregadores e guias, convertendo o que antes era uma travessia difícil em uma rota relativamente bem equipada. Essa nova atividade econômica, em grande parte dirigida por líderes comunitários eleitos, atuou como um fator de aceleração, incentivando mais pessoas do que nunca a se aventurar na jornada e a desembolsar dinheiro por isso.

Só em agosto, quase 82 mil pessoas atravessaram o estreito de Darién, de acordo com informações das autoridades panamenhas. Esse número representa, de longe, o maior total registrado em um único mês. A quantidade imensa de migrantes que cruzam a selva tem sobrecarregado o Panamá e a Costa Rica a tal ponto que ambas as nações afirmam que não têm capacidade de lidar com esse contingente. Samira Gozaine, a principal autoridade de migração do Panamá, chegou a ameaçar o fechamento da fronteira com a Colômbia.

Ao profissionalizar o negócio da migração, os líderes colombianos argumentam que podem evitar que suas cidades empobrecidas sejam sobrecarregadas por centenas de milhares de pessoas necessitadas. Além disso, buscam proporcionar uma travessia mais segura pela selva traiçoeira para os migrantes, ao mesmo tempo que estimulam a própria economia.

As mortes de migrantes na parte colombiana do estreito de Darién agora parecem ser relativamente baixas, conforme relatos de trabalhadores humanitários, porque até mesmo o grupo armado Gaitanista, ou Clã do Golfo, percebeu que a má reputação da região prejudica seus negócios.

Os guias da fundação conduzem os migrantes só até determinada parte do caminho, deixando-os na fronteira com o Panamá, muitas vezes sem comida nem dinheiro. A partir desse ponto, eles ainda têm dias de caminhada pela frente, em uma parte da selva que é ainda mais perigosa do que a que já percorreram. A ONU contabilizou mais de 140 mortes de migrantes na parte panamenha do estreito de Darién somente no ano passado, quase o triplo do ano anterior. Pelo menos 10% das vítimas eram crianças.

Gustavo Petro, o primeiro presidente esquerdista da Colômbia, assumiu o cargo no ano passado com a promessa de auxiliar regiões do país há muito negligenciadas, como as comunidades agora encarregadas das travessias na selva. Na entrevista, declarou que nunca tinha ouvido falar da Fundación Social Nueva Luz del Daríen. Mas, assim como os empreendedores da migração, defendeu sua postura de não interferência na migração como uma medida humanitária. “Eu diria que sim, estou disposto a ajudar, mas não exatamente da maneira que se pode imaginar”, afirmou Petro em relação ao acordo com o governo Biden, enfatizando que qualquer abordagem para resolver a questão deve priorizar “a resolução dos desafios sociais enfrentados pelos migrantes, a maioria dos quais não vem da Colômbia”. Petro acrescentou que espera que meio milhão de pessoas atravessem o estreito de Darién neste ano, e depois 1 milhão no próximo ano.

Tenham uma viagem segura!
Diariamente, barcos zarpam da ponta leste de Necoclí, com as docas abarrotadas de pessoas vindas de lugares tão distantes como a Índia, a China e o Afeganistão. “Tenham uma viagem segura! Desfrutem a jornada!”, os funcionários de Marín anunciam pelo microfone.

Em seu escritório, Marin disse ter orgulho de fazer parte do setor que se tornou o principal empregador da região.

A quase qualquer hora do dia ou da noite, ônibus fretados chegam à cidade, trazendo migrantes que ficaram sabendo da rota do estreito de Darién por meio do Facebook, do WhatsApp e do TikTok.

As ruas de Necoclí agora estão cheias de pessoas que falam mandarim, persa e nepalês. Moradores locais, empurrando carrinhos de madeira, buscam o sustento vendendo barracas frágeis, repelente de cobras e botas de borracha para as crianças menores. Enquanto isso, trabalhadores humanitários percorrem as vias, oferecendo ajuda na forma de garrafas de água, fraldas e protetor solar.

Os migrantes mais pobres chegam a pé, a maioria oriunda da Venezuela, que há quase uma década passa por uma crise econômica e humanitária.

Depois de atravessar o agitado golfo de Urabá, os passageiros dos barcos de Marín chegam à cidade de Acandí, situada na entrada da selva. Há décadas, alguns habitantes locais lucram levando migrantes para a floresta mediante pagamento, argumentando que essa assistência é crucial para evitar mortes.

Em uma tarde recente, Alexandra Vilcacundo, costureira de 44 anos, desembarcou em Acandí com outras 30 pessoas que fugiam do aumento da violência no Equador. Parecia angustiada, tendo deixado seus três filhos para trás.

Uma vez a bordo de riquixás motorizados, Alexandra e os demais migrantes foram levados de balsa por Acandí antes que finalmente atravessassem o portão de um complexo que García chamou de “o abrigo”.

Dentro do complexo, aproximadamente mil migrantes se reuniam. Residentes locais circulavam pela área, apresentando-se como “conselheiros” da fundação, encarregados de cobrar taxas e descrever a rota a partir dali.

García, integrante do conselho comunitário, apontou para as obras públicas próximas, construídas pelo conselho com fundos provenientes do negócio da migração. Ele disse que a cidade havia passado décadas tentando se tornar um destino turístico. No entanto, em razão da falta de escolas adequadas, de um hospital e até mesmo de uma estrada que a conecte ao restante do país, a cidade depende inteiramente da migração. “O que conseguimos com a migração é mais do que o turismo trouxe em 50 anos.”

Gatorade e sorvete
Poucos lugares representam a transformação da rota de Darién tão claramente quanto o primeiro acampamento na selva.

Apenas dois anos atrás, o trajeto que ia do abrigo em Acandí até esse acampamento, chamado Las Tecas, era uma estrada de terra batida. Hoje, é uma estrada transitável para caminhões. O acampamento em si já foi uma área lamacenta, e hoje é um vilarejo, com um pavilhão de boas-vindas, posto de controle de segurança, lojas, restaurantes e até mesmo um salão de bilhar.

Foto EFE

Aqui, a Fundación Social Nueva Luz del Daríen organiza suas numerosas equipes de guias e carregadores de mochilas. Coordena os horários das equipes, distribuindo o trabalho e pagando a cada membro US$ 125 por caminhada. Os carregadores são contratados individualmente pelos migrantes que precisam de ajuda para carregar suas bagagens ou crianças, com preços variando de US$ 60 a US$ 120 por carga.

Naquela noite, os guias passaram detectores de metal nos migrantes no pavilhão de boas-vindas de Las Tecas, marcando um novo protocolo de segurança. Na manhã seguinte, mais de 2.000 migrantes se reuniram no centro do acampamento.

Iván Díaz, membro da fundação, subiu a uma colina acima do acampamento, dando início à orientação matinal. Transmitiu a mensagem pelo megafone de que a jornada não era uma corrida, mas sim uma questão de sobrevivência para alcançar os Estados Unidos.

Díaz aconselhou os migrantes a não dormir perto dos rios, já que estes geralmente transbordam com as chuvas, a comer alimentos com sal para evitar a desidratação e a fazer pausas. Enfatizou que as crianças deveriam permanecer ao lado dos pais.

Era cerca de um dia e meio de caminhada até a fronteira com o Panamá, e, ao longo do percurso, a fundação havia montado pequenos acampamentos onde os migrantes poderiam adquirir água e comida.

Os preços aumentavam à medida que as pessoas avançavam. Um Gatorade custava US$ 2,50 no início e US$ 5 no fim do trajeto. Vendedores de sorvete acompanhavam a multidão, carregando refrigeradores portáteis nas costas.

Os migrantes se moviam lentamente, atravessando rios e escalando colinas cobertas de raízes. Com o grande número de pessoas, o fluxo de tráfego às vezes ficava congestionado.

Naquela noite, a maior parte do grupo dormiu em uma área lotada e lamacenta, onde funcionava um gerador. Vários restaurantes serviam peixe frito ou frango por US$ 10 o prato.

Muitas famílias, já tendo esgotado todo o seu dinheiro para chegar até ali, não comeram nada, preocupadas com o que fariam pelo resto da jornada. Ao anoitecer, o acampamento exalava o odor de fezes humanas e gasolina, e o humor geral começou a mudar.

A transferência
Para milhares de migrantes, a regularização dessa rota criou um paradoxo cruel. No lado colombiano do estreito de Daríen, onde o governo é quase ausente e as Forças de Autodefesa Gaitanistas, também conhecidas como Clã do Golfo, têm o domínio, os índices de criminalidade na selva parecem ser menores, pelo menos de acordo com grupos de ajuda humanitária e pesquisadores que entrevistam migrantes no fim do percurso.

Essa percepção de relativa segurança está atraindo um número crescente de pessoas para a floresta, com a esperança de que sobreviverão à jornada.

Mas, na fronteira com o Panamá, os guias da fundação os deixam — já que a travessia pode resultar em prisão — e o poder do grupo armado se dissipa. Em seguida, do lado panamenho, pequenos grupos criminosos percorrem a floresta, usando a violência sexual como ferramenta para extorquir dinheiro e punir aqueles que não podem pagar.

Em sua última manhã na Colômbia, o grupo de mais de 2.000 migrantes se levantou antes do amanhecer. Levou cerca de duas horas para subir dois morros conhecidos como Gêmeos e finalmente chegou a uma clareira lamacenta, onde uma placa pintada à mão indicava a fronteira.

Na clareira, os migrantes que ainda tinham sorte de ter dinheiro pagavam seus carregadores. Em seguida, um homem se adiantou para dar as últimas instruções: “Andem devagar, permaneçam juntos e sigam a trilha marcada por pedaços de plástico azuis e verdes.” Explicou que seriam necessários mais três dias de caminhada para chegar ao fim da selva, onde a ONU e o governo do Panamá ofereceriam assistência.

“Em nome do município de Acandí, gostaríamos de lhes desejar uma boa viagem”, disse antes que os migrantes prosseguissem.

c. 2023 The New York Times Company

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