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O cadeado no telefone

Edel Holz  – Vovó Inocência deixava a chave da casa num buraco do lado do alpendre. Quando a porta milagrosamente estava trancada, a gente se aventurava a co locar nosso pé na torneira pra alcançar o lugar secreto que guardava a chave da casa dos nossos sonhos. Bastava abrir a porta para podermos mexer no som, ligar a tv, comer arroz doce moreninho, amêndoas de Cássia, pipoca à vontade, iogurte de ameixa, arroz com macarrãozinho, doce de cidra e balas… Cantávamos alto e desafinado sem ninguém pra chamar a atenção… Dançávamos e brincávamos de queimada no meio da rua … Só não podíamos falar ao telefone.

Ela havia comprado um cadeado para bloquear as ligações. Vovó tinha sido dona da primeira agência telefônica de Passos. Mas nos idos de 70, não era mais. As pessoas que frequentavam a “Casa da Censa” abusavam. Ligavam pra todo canto, inclusive interurbano. A casa da vovó era de todo mundo: dos vizinhos, dos filhos dela, dos amigos dos filhos, dos filhos dos amigos… Até eu pensava que era um pouco meu aquele lugar tão mágico, já que tinha adotado a ‘Censa’ como minha avó.

Toda noite tinha seresta, sarau, luau Tudo cheirava à arte e boemia. As calçadas ficavam repletas de cadeiras e as conversas eram jogadas fora. O alpendre nem cabia tanta gente nele…. Mas aquele telefone com cadeado, me intrigava. Pra que que a vovó tão liberal aprontou uma dessas com a gente? O Brasil estava se livrando da ditadura militar e da censura… Um cadeado representava prisão. Descobri mos a chave, liberamos o telefone, ligamos pra Deus e o mundo. Quando veio a conta, vovó chorou, porque não ti nha dinheiro pra pagar. A gente não respeitou o único limite que ela havia nos dado: o cadeado.

Aquele objeto representava a economia do mês, pra que rendesse a aposentadoria do marido que a deixou viúva. Ela não era mais a dona da Cia. telefônica. E a gente nem sabia ainda o que significava a palavra economiza.


SOBRE A COLUNISTA: Edel Holz é a mais premiada e consagrada atriz, roteirista, diretora e produtora teatral brasileira nos Estados Unidos. Inquieta e de mente profícua, Edel tem sempre um projeto cultural engatilhado para oferecer para a comunidade brasileira. Depois de anos de ausência, Edel volta a abrilhantar as páginas de um jornal. Damos boas vinda à poderosa Edel.

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